quinta-feira, 5 de março de 2009

uma entrevista

Ficar em uma livraria é um dos meus maiores prazeres. E uma vez na semana, pelo menos, é o meu programa. Olho os lançamentos dos livros, vejo as revistas da semana, novidades em guias de viagem, escolho coisas para comprar. Sento no Café, peço uma água tônica ou um chá, um docinho ou um pão de queijo, e pronto, a tarde perfeita. Melhor que isso só se eu gostasse de café! (Bolinho e café, um sonho impossível que nunca vou realizar!)
Ontem, no fim da tarde, em plena dieta, dividindo um rocambole diet com uma amiga no café da Saraiva, folheando a Marie Claire, uma entrevista com a Bel Kutner me chamou muito a atenção.
Tenho a maior admiração por pessoas que se expõem, abrem as suas vidas, contam seus problemas de forma natural. Eu não teria essa coragem. Mas é o caso de Bel. Depois de enfrentar a morte da mãe, Dina Sfat, tão cedo, conviver com a doença do pai, Paulo José, por tanto tempo e cuidar do filho, que tem uma síndrome rara, ela encara tudo isso com um realismo impressionante.
Diferentemente de um otismista ou de um pessimista, o realista tem a vida como ela se apresenta nas mãos, sem mistérios ou devaneios, com momentos de alegria e de desespero, conforme eles aparecem, sem ficção ou forçação de barra. É! Pronto! Vamos lá!
É bacana de se ver alguém encarar a vida de uma maneira tão madura e com humor. E uma vida nada fácil.
É, a vida de ninguém é fácil. Mas alguns não têm descanso mesmo...


a entrevista

Marie Claire - Você perdeu sua mãe aos 18 anos, seu pai sofre de mal de Parkinson e o Davi, seu único filho com o músico Fábio Mondengo, é portador de uma síndrome rara e ainda pouco conhecida no Brasil. Mesmo assim, você vive rindo e arrancando gargalhadas...
Bel Kutner - Ah, mas eu sofro! De vez em quando dá o bobeirol, dá um uauauau [faz cara de maluca e mostra a língua], mas dura cinco minutos. Digo: 'Ih, vai chorar, nenê? Chora nenê!'. Debocho de mim mesma que é para passar logo. Sofrer, só se for rápido. Felizmente, tenho uma rede de proteção incrível, que me permite cair sem me machucar.

MC - Que rede é essa?
BK - São meus amigos. Temos um projeto de asilo próprio. Discutimos quem vai por quem pra tomar sol e até quem vai pôr o cigarrinho no buraco da nossa traqueostomia, sabe? [ri e apaga o primeiro de dois cigarros que acendeu durante a entrevista]. Essa coisa de 'oh céus, quem vai cuidar de mim?' não me pega. Cuido de gente pra caramba: cuidei da minha mãe, cuido do meu filho e se meu pai precisar, cuidarei dele também. Sou assim. Confio nas pessoas, me entrego. Como diz meu pai: 'Mil vezes ser bobo do que ser esperto'. O bobo dorme tranquilo, não perde o sono pensando em quem quer sacaneá-lo.

MC - Fazer análise também ajuda...
BK - Ajuda e atrapalha. Já fiz 200 anos de análise. Há terapeutas ótimos e outros que só falam 'hum-hum', enquanto você faz um milhão de besteiras. Cansei desses. Comigo, o que funcionou foram meus dez anos com uma terapeuta maravilhosa de bioenergética e healing. Ela me fez encarar terapia de grupo e funcionou. Aprendi a falar sinteticamente sobre o problema. Não ficava no nhé, nhé, nhé de 'oh, meu pai tem isso, meu filho tem aquilo'.

MC - Mas todo mundo tem seus momentos de tristeza.
BK - Tem! Eu grito, choro e esperneio, mas bem rápido, senão vira vício.

MC - Você acha que a depressão é esse vício pelo sofrimento?
BK - Depressão é doença. Mas não posso chamar o que tive de depressão. Tive problemas concretos, duros choques de realidade, e nunca fiquei prostrada numa cama. Nem por dois dias. Quando descobri que meu filho sofria de esclerose tuberosa, ouvi besteira de gente que ia à internet, pegava meia dúzia de informações e despejava. Aí, me disse: 'Ok, preciso de ajuda médica para não pirar'.

MC - Você nunca tinha ouvido falar em esclerose tuberosa até que...
BK - Até que, às 11 horas da noite, toca o telefone na minha casa e eu, no sexto mês de gravidez, atendo. De repente, me vejo ouvindo as maiores barbaridades do mundo, de um médico sem traquejo, que vomitava milhões de possibilidades tenebrosas.

MC - Era seu ginecologista? Por que ele ligou tão tarde?
BK - Era um profissional despreparado. Havíamos feito um exame de rotina e descobrimos que o bebê tinha um tumor de um centímetro no coração. Aí, alguns exames mais específicos levaram ao diagnóstico da esclerose. Eis que ele me liga, tarde da noite, para dar essa notícia, despejando todas as desgraças do mundo com aquele prólogo do 'olha, querida, você tem que ser forte, vou estar do seu lado'. Disse que meu filho viveria com tumorações, feridas e manchas café com leite espalhadas pelo corpo, problemas no rim, hemodiálises constantes... enfim, uma desgraceira, e eu, apavorada, perguntei o que poderia fazer. A resposta foi: 'No Brasil, nada, porque o aborto no sexto mês de gravidez só é permitido em caso de anencefalia. Já na Espanha...'.

MC - Ele a aconselhou a abortar?
BK - Quando percebi que ele estava me sugerindo essa atrocidade, não tive dúvida: decidi mudar de médico. Aí uma das cardiologistas mais respeitadas do País, com quem fui buscar informações sobre o coração do bebê, me salvou. Aconselhou a seguir a gestação normalmente, disse que o tumor no coração desapareceria - e desapareceu -, sugeriu cesárea em vez de parto normal e nos fez manter segredo absoluto sobre o diagnóstico. Até mesmo para os amigos e parentes mais próximos.

MC - Não contou nem para o seu pai?
BK - Meu pai é o ursinho Pooh, a pessoa mais positiva do mundo, e também não soube. Ele convive há 15 anos com a doença dele e é meu 'muso'. Luta, supera, muda a medicação, opera o cérebro, faz fisioterapia, toca piano. Acima de tudo, tem joie de vivre. Então, por que eu ia dizer: 'Seu neto tem um problema grave que não sabemos direito o que é'?. Tem gente que vive com a síndrome até ficar velha. Tem quem, na adolescência, descubra um tumor que entope um órgão e opere. E tem crianças autistas que, na verdade, não têm problemas psíquicos, mas sim tumorações que, apesar de não serem malignas, podem dificultar a sociabilização delas. Ou seja, tudo poderia acontecer.

MC - E, afinal, o que aconteceu?
BK - O Davi nasceu normal, ótimo, fofo. Teve uma espécie de convulsão, aos 5 meses, mas eu morava ao lado da neuropediatra e em dez minutos ela resolveu tudo. Hoje, existe um remédio importado, maravilhoso, que controla o problema na maioria dos casos e no do Davi tem funcionado. A síndrome faz que ele tenha atraso com relação às outras crianças, mas, sinceramente, já não sei se é por conta dos cistos que a esclerose forma no cérebro ou pela quantidade de remédios que toma. O fato é que está se desenvolvendo bem. É um menino alegre, enorme e sedutor. Mas fala pouco, só quando quer muito alguma coisa.

MC - Ele tem algo na aparência?
BK - Tem um hemangioma [mancha avermelhada] no rosto, mas é uma criança supersaudável, que vai muito bem na escola. E ai de quem mexe com ele! Se alguém vira e fala: 'Ih, ele tem a cara manchada?', perto da babá dele, a Cida, já vou logo dizendo: 'Pelo amor de Deus, guarda essa peixeira, mulher'.

MC - Como você contou para o seu pai da síndrome?
BK - Infelizmente, não fomos nós que contamos. Na porta da UTI neonatal, enquanto meu pai esperava para visitar o neto, um médico que eu nunca tinha visto na vida virou para ele e falou: 'Seu neto tem a doença do homem elefante'. Se empolgou porque viu artista, sabe?

MC - Não acredito...
BK - Primeiro: ele não podia usar esse apelido maldoso, 'doença do homem elefante', porque o termo correto é neurofibromatose. Segundo: meu filho não tem isso. Tem síndrome de esclerose tuberosa. Ou seja, o cara deu o diagnóstico errado para alguém que sequer era paciente dele. Que pena que meu pai, antes de ver o neto, teve que ouvir uma besteira dessas.

MC - Como ele a encontrou?
BK - Eu estava no quarto, toda costurada, e finalmente chegou meu bebê para mamar. Lindo, faminto, com quase quatro quilos. Aí, meu pai entrou pálido, atordoado. Fiquei louca. A sorte é que estava com o bebê no peito e mil pontos no baixo-ventre, senão não sei o que faria. Se alguém me agride, tudo bem, cuspo e saio andando. Mas, com meu pai [aperta a boca e rosna], não admito que ninguém mexa [risos]. Depois do nascimento do Davi [rosna de novo], a vingadora assassina ficou ainda mais furiosa.

MC - Sua vida parece ter se dividido em 'antes e depois' do Davi.
BK - Sem dúvida. Não dou mais valor a besteira. Antes, tinha uma coisa meio pobre-menina-rica. Pronto, passou. Hoje, o mais importante pra mim é o bem-estar do meu filho.

MC - E o casamento, é importante? No ano passado, você e o Fábio foram e voltaram algumas vezes. Como estão agora?
BK - Estamos separados. As reaproximações, na verdade, tinham a ver com antigos hábitos e questões ligadas à rotina de quem viveu tanto tempo junto, não à paixão.

MC - Nem ao falar da separação você demonstra tristeza...
BK - O quê? Eu já estive arrasada. Só que tinha que levar meu filho à fonoaudióloga de manhã, saca? É diferente. Já fui adolescente, perdi amigos por mortes violentíssimas, andei três dias pela rua sem comer e sem falar. Tudo muito cedo. Experimentei todas as drogas do mundo e me perguntei: 'É isso que as pessoas usam de pretexto para fazer besteira?'. Hello! Chibata, paredão!

MC - Você perdeu esses amigos antes ou depois da sua mãe?
BK - Na adolescência, antes da minha mãe, perdi um grande amigo. Depois, aos 20 e poucos anos, perdi um namorado. Quando você passa por isso, se joga, arrisca, faz coisas absurdas. Felizmente, sempre voltei pra casa inteira. Nunca fui, por exemplo, assaltada à mão armada, agredida. Já fui assediada, mas violentada, nunca.

MC - Como foi isso?
BK - Num curso de línguas, aos 12 anos. Fui fazer uma prova e o coordenador me botou no fundo de uma salinha, veio pra cima de mim e tentou me dar uma prensa. Chegou, chegando, pra me beijar. Mas dei um empurrão nele tão forte que o cara saiu que nem cachorro. Depois, fiz a prova, entreguei pra banca e não contei nada pra minha mãe. Tive medo da reação dela. Acho que ela mataria o cara. Não foi um trauma, mas entrei no caratê e nunca mais parei de lutar [risos]. Não me senti vítima, entende?

MC - Entendo, mas acho estranho você nunca se vitimar...
BK - Já fiquei uauauau, pobre de mim [faz outra careta]. Mas saio rapidinho. Não estou minimizando, acho tudo uma sacanagem do destino. Queria minha mãe e meus amigos vivos, e um monte de outras coisas, só que não sou criança. Sou adulta. E sei que, na vida, perdemos gente e temos problemas.

MC - Você já parou para pensar que tem gente que sofre muito mais, por muito menos?
BK - Tem gente que quebra a unha e fica pra morrer, né? Já eu acho que 99% da população adoraria estar no meu lugar. Minha mãe morreu, meu pai tem Parkinson, meu filho tem uma síndrome rara, meu casamento terminou e estou desempregada porque A favorita acabou, mas tem gente que não tem o que comer, não pode tomar uma vacina! Não é 'viu como é legal ser burguesa num mundo ferrado', mas assim como há sofredores, há quem tenha talento nato para a felicidade.

MC - Que lembranças gostosas você carrega da infância?
BK - Eu e minhas irmãs [Ana, 37 anos, e Clara, 33] crescemos nos sets. Em 1988, fiz o papel de minha mãe quando jovem, em Bebê a bordo. Antes, tinha feito O caminho das pedras verdes, dirigido pelo meu pai, e Os amores de Castro Alves, em que Tony Ramos era o poeta, minha mãe, uma das amantes dele, e eu, a filha. Naquela época, não tinha toda essa organização sindical. Precisava de crianças? Os artistas levavam as suas. Era uma farra.

MC - Esse universo a fascinava?
BK - Estar nos sets era natural. A vida pública era um pesadelo. Quando criança, tinha horror de falarem com a minha mãe. A gente ia a restaurantes e ficavam interrompendo. Eu odiava. Tinha vergonha. Ela ia me buscar na escola, linda, sexy, com decote até o umbigo, e eu dizia: 'Por que você não é como as outras mães que são professoras, usam jeans e camiseta?'.

MC - Virou alvo de piada na escola por causa disso?
BK - Não. Minha mãe fez Playboy aos 40 anos. Eu tinha uns 10 e não me lembro de comentários maldosos. Pelo contrário. Minha mãe era querida por todos. Levava a gente à escola, fazia rodízio de carona com outras mães. Ia à reunião de pais. Era mãezona mesmo.

MC - Seus pais se separaram quando você era criança. Lembra-se dessa fase?
BK - Eu tinha 10 anos e eles estavam juntos havia 17. Brigavam como todo casal em fase de separação, mas não deixavam transparecer. Lembro que fiquei muito triste quando minha mãe me chamou para contar. Mas meu pai mudou para duas quadras de casa, e vivíamos juntos.

MC - Como reagiu ao conhecer o primeiro namorado da sua mãe, depois da separação?
BK - A gente tratou o cara bem mal. Tínhamos ciúme. Não queríamos outro homem em casa. Depois passou. Até porque meus pais eram bem amigos. Na adolescência, fui morar um tempo com meu pai. Depois, aos 15, eu e minhas irmãs fomos morar com a minha mãe em Portugal. Ficamos um ano, enquanto ela fazia O judeu, filme que contava a história de um poeta de origem judaica, obrigado a se converter ao cristianismo. Estudamos inglês na Inglaterra e meu pai foi nos visitar. Fomos todas com ele a França, Espanha. Uma farra. Voltar é que foi difícil.

MC - Por quê? Foi quando você descobriu que sua mãe tinha câncer?
BK - Não, foi difícil porque toda volta à rotina é difícil. Talvez minha mãe já tivesse descoberto o câncer de mama, mas isso ainda não era claro pra gente. Só soubemos um tempo depois.

MC - Como você soube?
BK - Ela me chamou e contou. Foi difícil, terrível. Eu já era grande - tinha 18 anos quando ela morreu. Ia às sessões de químio, sempre ao lado dela.

MC - Ela chamou todas vocês e disse: 'Filhas, estou com câncer'?
BK - Não. Contou para cada uma em separado. A gente tinha uma relação de um para um em casa. Essa era uma preocupação dela. Cada uma tinha seu dia de passear com exclusividade. Não éramos uma turma sempre. Quando fiz 9 anos, meu pai me perguntou se eu queria uma festa ou uma viagem. Disse que queria a viagem, mas só com ele. Fomos para a Amazônia. Foi incrível. Isso ajuda a criança a ver que ela é importante individualmente.

MC - Kutner é um sobrenome judeu, do seu avô materno. Qual sua relação com a religião?
BK - Já flertei com muita coisa, como a maioria das pessoas no Brasil, que vai ao candomblé, dá uma passada na igreja, leva um passe e reza o pai-nosso. Somos ecumênicos e isso é bonito. Mas o judaísmo, pra mim, é atávico. Tenho respeito por essa religião e, quando resolver estudá-la, será de verdade. Por enquanto, só posso ser judia de coração. Não dá para guardar o shabat [ritual judaico do pôr do sol de sexta ao de sábado] fazendo teatro na sexta e comendo no bandejão do Projac, né?






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